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Proteção de dados: o papel da LGPD no enfrentamento da violência contra a mulher

Atualizado em 20 de outubro de 22 | Geral  por

Sâmia Frantz

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) representou um importante marco regulatório para a proteção dos dados pessoais no Brasil e inaugurou um novo direito fundamental para compor o alicerce da dignidade da pessoa humana. Mas não só isso: ela também pode ser um poderoso instrumento para unir forças no combate à violência contra a mulher e à desigualdade de gêneros no Brasil. 

O mundo lá fora sempre foi hostil com as mulheres. E esse comportamento da sociedade migrou também para o mundo online, que passou a reproduzir tudo aquilo que já existia na vida off. Com um plus: no virtual, tudo se potencializa, tudo ganha mais proporção. Tudo é (ainda) mais intenso. Tudo é (ainda) mais exacerbado. E é assim porque muita gente se sustenta (ainda) na falsa sensação de anonimato. Na ideia de que a internet (ainda) é uma terra sem lei.

A tecnologia sempre teve grande poder. Ela facilita a rotina do dia e aproxima pessoas, mas também perpetua desigualdades e amplia as possibilidades de violência e discriminação. Uma pesquisa feita em 2020 pela ONG Plan Internacional Brasil mostrou que 77% das mulheres no Brasil afirmam já terem sido assediadas no ambiente virtual. Esse número é maior, até mesmo, que a média global, que ficou em 58%. 

São ataques que se manifestam de diferentes formas. Agressões, insultos e comentários depreciativos que se alastram em efeito cascata, de forma muito veloz e alcance imensurável. Mas o objetivo é sempre um só: causar constrangimento e difamar a integridade da mulher. Tudo muito difícil de ser controlado. Tudo muito difícil de ser revertido. 

É assim sempre que a mulher expõe detalhes da sua vida na internet. Quando, por exemplo, baixa aplicativos de controle do ciclo menstrual - que também são úteis para o planejamento familiar. Programas assim, no entanto, exigem o cadastro de informações íntimas relacionadas à saúde e à vida sexual, que nem sempre estarão protegidas ali. Muitos sequer têm uma política clara e minuciosa, nem conseguem esclarecer tudo que está sendo recolhido e para qual finalidade. Dados que envolvem saúde, direitos reprodutivos, autonomia e liberdade sexual das mulheres são dados pessoais (art. 5º, II).

É assim também quando a mulher faz compras online de lingeries, camisolas, fantasias e vibradores. O direito à privacidade que ela tem ali deve envolver não só os dados pessoais informados, como também a pesquisa feita por ela no computador. Tudo isso, afinal, é dado pessoal.

É assim também quando a mulher tem suas fotos e vídeos íntimos compartilhados de maneira indevida e sem consentimento - o chamado porn revenge. E quando recebem abordagens profissionais em redes sociais como o Linkedin, com um falso discurso de interesse de contratação ou parceria mas que, depois, evoluem para insinuações e comentários agressivos. Fotos e vídeos e dados profissionais são todos dados pessoais.

É diante deste contexto, cercado por preconceitos de gênero e ataques gratuitos, que a LGPD se torna relevante. Ela veio não só para garantir a privacidade dos dados online, mas também para se somar a outras ferramentas já existentes para barrar a violência de gênero online. 

A proteção da privacidade

No Brasil, o direito à proteção de dados pessoais está diretamente vinculado aos valores de privacidade e intimidade, cuja proteção decorre da Constituição Federal (art. 5º, X). A LGPD, portanto, renovou a definição de privacidade no ordenamento jurídico, concedendo ao usuário o direito de ter e manter o controle de todos os seus dados. O direito à privacidade, que ele já tinha, se uniu à garantia de poder e controle sobre informações que lhe dizem respeito e sobre a maneira como elas são difundidas, compartilhadas ou vendidas. Ao agente de mercado restou a obrigação de prestar essas orientações.

O usuário, no entanto, nem sempre pode evitar o repasse de seus dados, já que, por vezes, esse é o mínimo a ser feito. Mas ele pode outra coisa: pode determinar e delimitar a forma como eles serão usados e compartilhados. Essa autorização precisa vir dele, que é o legítimo titular das informações, e deve ser respeitada pelos agentes de mercado como um dever ético na prática de suas ações.

Em razão disso tudo, a proteção da privacidade vem sendo apontada como um dos maiores conflitos do desenvolvimento tecnológico. Mas é importante perceber que ela não pretende engessar a atuação dos agentes de mercado. O papel aqui é apenas garantir um tratamento responsável e transparente a todos os dados pessoais que, porventura, chegarem até eles.

O princípio da não discriminação

Discriminar por meio de dados não pode. Por isso, a discriminação é um dos elementos que integram a lista de vedações da LGPD, barrando todo e qualquer método ou técnica de coleta, armazenamento e tratamento de dados que possam dar insumo para isso. 

O princípio da não-discriminação (art. 6º, IX) é a forma que a lei encontrou de garantir um tratamento adequado dos dados, sem que eles sejam usados para práticas discriminatórias, ilícitas, abusivas ou irresponsáveis. 

A internet, afinal, não perdoa. Por lá, a discriminação de gênero é mais presente do que se imagina e, por isso, precisa dos freios legais para evitar que continue se proliferando. Essas questões são claramente perceptíveis nas bases de dados empresariais (que armazenam as informações) e também no algoritmo que elas utilizam para compilar e fazer análises estatísticas desses materiais. 

Em ambos os casos, as ferramentas costumam estar contaminadas com uma perspectiva discriminatória já na sua criação, copiando e reproduzindo vieses e construções sociais preexistentes do mundo real. Isso leva a correlações desconectadas da realidade, com erros, imperícias e falta de representatividade, seja no uso dos dados históricos ou na supressão de dados pessoais sensíveis, o que impacta diretamente no resultado final.

O caso do algoritmo de recrutamento da Amazon é um exemplo clássico disso. Até 2015, a plataforma rejeitava automaticamente os currículos enviados por mulheres, pois a inteligência artificial usada havia sido projetada para se basear no quadro de empregados dos dez anos anteriores - que era predominantemente masculina. 

A transparência também passa pela possibilidade de se realizar uma auditoria de algoritmos, uma responsabilidade de competência da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Essa auditoria permite apurar e coibir o potencial discriminatório das estruturas algorítmicas no tratamento automatizado de dados pessoais, de forma a viabilizar resultados que estejam em conformidade legal (art. 20, parágrafo 2º). 

O gênero como dado pessoal sensível

A LGPD não considera o gênero como dado pessoal sensível (art. 5º, II). Mas isso não significa que ele não deva ser assim considerado. Percebê-lo desta forma é essencial para coibir atos violentos no ambiente online - especialmente quando a ausência desse enquadramento vem carregada de potencial discriminatório. 

Os dados pessoais sensíveis se enquadram, segundo a lei, em uma natureza diferenciada, que assegura a ele uma regulação específica para os processos de coleta e tratamento, baseados, ainda, em critérios diferenciados de conformidade. A ideia, portanto, é evitar que o usuário tenha suas informações pessoais utilizadas em desfavor de si, já que a ele pode estar associado um conteúdo com potencial discriminatório. 

No entanto, o ser mulher se enquadra em uma condição que, por si só, já impõe certas limitações ao exercício da personalidade. Se ela é excluída automaticamente de um processo seletivo que baseia sua análise em dados históricos onde elas não são consideradas (como aconteceu com a Amazon, por exemplo), então o que existe aí é um tratamento diferenciado a um grupo de pessoas que está sendo excluído dessa oportunidade. 

O mesmo acontece quando elas buscam por ascensão profissional e são barradas e dispensadas do processo pela mera condição de serem mães, gestantes ou estarem em idade reprodutiva, por exemplo, porque o algoritmo, na seleção dos candidatos, considerou dados pessoais que não possuem pertinência com o desempenho profissional.

Tais formas de tratamento, portanto, podem ser consideradas discriminatórias e até ilícitas. Pelo princípio da não discriminação, o direito à proteção à privacidade dos dados pressupõe equidade de gênero.

E pelo art. 20, as decisões tomadas com base em tratamento automatizado podem ser revisadas pela ANPD - especialmente aquelas que impactam e afetam os interesses e os direitos de um determinado grupo de titulares, como as mulheres. Isso abre caminhos para a responsabilização empresarial, especialmente perante seu dever de explicação, transparência e accountability. 

O princípio da boa-fé e transparência

A LGPD também está baseada na transparência (art. 6º, VI), uma das vertentes da boa-fé que se espera dos agentes de mercado durante os processos de coleta, armazenamento e tratamento de dados pessoais. Na prática, é a obrigação que eles têm de informar seu modus operandi ao maior interessado nos dados pessoais: o seu próprio titular.

Uma empresa é transparente quando presta orientações claras, precisas e acessíveis sobre os motivos que faz com que ela recolha dados sobre a renda mensal e os bens acumulados em seu nome. E também explique o que vai fazer com eles e quais critérios, procedimentos e cuidados irá utilizar para isso (art. 20, parágrafo 1º). 

É transparente também quando pede o consentimento da mulher para o uso, o armazenamento e o tratamento de dados envolvendo a sua saúde sexual e reprodutiva. E quando facilita o caminho para que ela possa pedir a suspensão deste trabalho, a exclusão de seus dados e a revisão das decisões automatizadas a ele relacionadas. 

Não foi por acaso que os dados pessoais se tornaram um dos principais ativos da economia digital - eles são tão valiosos quanto o petróleo, já dizia o matemático londrino Clive Humby. É importante entender que, na atual era da informação, não existe dado irrelevante. Em mãos erradas, eles podem ser usados para qualquer coisa. Para contratar serviços, para abrir contas, para fazer compras, para acumular dívidas. E também para causar estragos irreparáveis e devastadores na vida e na reputação de uma mulher. 

Tratar a proteção de dados pessoais sob uma perspectiva de gênero é, portanto, fundamental para enfrentar a insegurança digital das mulheres. E também a discriminação e a violência que está se proliferando com cada vez mais força no mundo online.

Sâmia Frantz é advogada em Florianópolis (SC) e com atuação virtual em todo o país, prestando assessoria e consultoria jurídica contenciosa e preventiva nas áreas de Direito Digital, Lei Geral de Proteção de Dados, Compliance Digital, Direito das Startups, Contratos, Direito de Família e Execuções e cobranças e Direitos Humanos. É pós-graduada em Direito Digital e Compliance e membro da Comissão Estadual de Privacidade e Proteção de Dados, da Comissão Estadual de Direito das Startups e da Comissão Estadual de Liberdade de Expressão da OAB/SC. Também possui formação em Jornalismo e atua como produtora, revisora e estrategista de conteúdo jurídico. 

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